Dor, desespero e angústia: pessoas com deficiência na sociedade do capital

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imagem tipo ilustração. A ilustração mostra o ícone branco de uma pessoa usando cadeira de rodas que se depara com degraus brancos e lá no topo a palavra trabalho escrito em branco também. O fundo da imagem é vermelho.

Escrito por: Lucas Antonio

Eu realmente gostaria de escrever um texto diferente. Sentiria muito prazer em relembrar as conquistas dos trabalhadores de todas as categorias, homenageá-los e cumprimentá-los nesse estranho 1º de maio. Mas como posso fazer isso enquanto, por todo o país, milhares de pessoas com deficiência lutam contra o cruel fantasma do desemprego? Como posso alegrar-me nessa data quando vejo reformas nas leis previdenciárias e sociais que, entre outros males, afetam, de maneira cruel, a (já precária) vida profissional da pessoa com deficiência no Brasil?
Se o desemprego é uma triste realidade para muitos brasileiros nos difíceis tempos nos quais vivemos, creiam, para as pessoas com deficiência, é ainda mais.

Um trabalhador sem deficiência, embora desempregado, pode sempre vislumbrar uma nova ocupação, uma nova oportunidade… Pode pensar no fim da suposta crise que lhe disseram ser toda a causa do mal; pensar num futuro mais colorido, e mesmo crer, lá no íntimo, que tudo vai melhorar. Mas, enquanto isso, o trabalhador com deficiência (especialmente deficiência severa), no que pode pensar? Não pode pensar no fim da “crise”, pois sabe que ela não representará, de forma nenhuma, o fim do preconceito profissional sofrido diariamente, e também não pode pensar numa próxima oportunidade, pois, muitas vezes, não teve sequer a primeira.

Desprezado, subjugado, jogado de lá para cá, e, o que é pior: tendo a plena consciência de que, por mais próspero que o país esteja, sua empregabilidade será sempre precária, e a discriminação será uma constante durante toda a vida como trabalhador.

Conforme venho denunciando há muito tempo, o mercado de trabalho é excludente, discriminatório, preconceituoso e extremamente duro para com os profissionais com deficiência. O que falo, falo com pleno conhecimento de causa. Conversando com cegos aqui e ali, constata-se logo que a mesma realidade atroz se faz presente em todos os lugares, todas as empresas, todos os setores, todos os estados da federação, nas cidades grandes e pequenas e em qualquer que seja a categoria… Mas será que são somente cegos os prejudicados? Não posso ser egoísta, o preconceito também está presente contra surdos, autistas, pessoas com deficiências motoras ou intelectuais.

Ao ler esse texto, onde mostro a realidade nua, sem máscaras, sem subterfúgios e com a convicção inabalável de quem sente na pele o que escreve, alguém talvez arrazoe que, no Brasil, há uma lei de cotas para diminuir a desigualdade profissional. Com efeito, tal lei existe. Trata-se da lei 8213, de 24 de julho de 1991 que, em seu art. 93º, dispõe o seguinte: “A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência”.
Note, companheiro leitor, quão baixa é a proporção exigida por lei! E isso não é o pior… O texto é omisso, não declarando o que se entende por “pessoa portadora de deficiência” (medonho termo que, graças aos esforços incansáveis de militantes com deficiência, já não é mais usado).

E Então, para cumprir o que dispõe a lei, o que fazem as empresas? O que fazem ultrapassa em muito as raias do bom senso. De forma demagógica, promovem a falsa inclusão. E como a promovem? Promovem-na contratando pessoas com deficiências leves, e enquadrando-as na cota, que já é ridiculamente baixa. Ao fazer isso, cruelmente permitem que milhares de profissionais com deficiências consideradas severas, perfeitamente habilitados, continuem ao léu, por mais que, sem parar, tais profissionais busquem aperfeiçoar-se através de cursos, especializações, graduações, pós graduações, qualquer coisa que possa lhes engordar o currículo e, quem sabe, tornar um pouco mais fácil sua contratação.

E engana-se quem pensa que para por aí… A lei 8213, que dispões sobre cotas, é cheia de imperfeições e toda sorte de omissões. As cotas só se aplicam para empresas com mais de cem funcionários, e, mesmo assim, numa proporção vergonhosamente pequena. Até 200 empregados, 2%; de 201 a 500 empregados, 3%; de 501 a 1000 empregados, 4%; de 1001 empregados em diante, 5%. E é só isso!

Se a realidade é tão impiedosa, é natural se perguntar: não há agências de emprego, fundações, instituições ou órgãos responsáveis pelo recrutamento de pessoas com deficiência no país? Há algumas iniciativas nesse sentido, sim. Mas, quando funcionam, acabam por indicar profissionais com deficiências leves, por exigência das próprias empresas. E mais uma vez, excluem-se os cegos…

Em meu entendimento, a cegueira não é uma deficiência grave, de forma alguma. Entretanto, é assim que pensam os empregadores, e como convencê-los do contrário? Como criar, na sociedade, ao menos um pouco de consciência social? Nós tentamos fazer isso continuamente, sem sessar. Conseguiremos? Até agora, os progressos são muito pequenos… Mas, mesmo assim, não perdemos a esperança. Todas as pessoas com deficiência sonham com a plena inclusão no mercado de trabalho. O sonho vai se tornar realidade? É uma pergunta que só o tempo poderá responder…

Mas enquanto isso não acontece, cabe a nós continuar a mostrar nossas capacidades, mesmo diante da incredulidade de alguns, e do horrendo escárnio maldoso de outros.

Talvez, leitor, você já esteja ansioso para terminar esse texto. Talvez não esteja acostumado a textos longos, ou considere que o tema da inclusão não lhe diz respeito, em absoluto. Mesmo assim, peço que continue comigo por mais algumas linhas. O que você está lendo são as sinceras palavras de um cego que, juntando experiências de outros cegos dos quatro cantos do país e somando-as às suas próprias, tenta falar sobre um tema que merece atenção.

Se a lei de cotas é imperfeita, o que nos resta? Resta-nos a carreira no serviço público, que é considerada por alguns como um paraíso onde, finalmente, talvez, apenas talvez, possamos ser aceitos como profissionais competentes.
Todavia, os empregos públicos não são suficientes, e os órgãos (municipais, estaduais e federais) nos últimos anos, seguindo a insana ideia de Estado mínimo, abrem cada vez menos concursos. Quando abrem, as vagas destinadas às pessoas com deficiência são poucas, um percentual mínimo. E não nos esqueçamos também, sequer por um momento, que mesmo no serviço público há preconceitos de todo tipo, vindos de colegas de trabalho, supervisores, e, não raro, até mesmo do próprio Estado.

E o que dizer dos trabalhos autônomos? Ora! Há pessoas que realmente não têm nenhum tipo de vocação para trabalhar por conta própria. E mesmo que a vocação apareça, como que por milagre, ainda assim os profissionais com deficiência enfrentarão indizíveis dificuldades para se impor perante os outros enquanto trabalhadores competentes, íntegros, inteligentes e capazes de realizar a função a que se propõe.

Diante de tudo quanto expus, não estranhe, leitor sem deficiência, quando insisto em dizer que o dia do trabalho, para mim, configura-se todos os anos como uma data lúgubre, tristonha, melancólica. Não consigo escrever sobre a história dos movimentos trabalhistas; não consigo, mesmo que queira, falar sobre as conquistas dos trabalhadores de todo o mundo, tampouco demonstrar o otimismo incorrigível daqueles que veem nessa data um marco de reconhecimento e respeito a classe trabalhadora. Não, nesse caso, sou um eterno pessimista.

Ao lerem o que escrevo, algumas pessoas aconselham-me a, ao menos às vezes, ser menos fatalista. Entretanto, confesso-vos (ainda que com certo acanhamento): não consigo. Não posso simplesmente deixar de pensar em todos os problemas de dignidade e na escassez de oportunidades que nos rondam sempre. Somos pessoas com deficiência; para o mercado, talvez, sejamos apenas mecanismos imperfeitos que tendam se adequar à cruel máquina do capital.

Não, não sou socialista; nem comunista, nem qualquer “ista” que me queiram imputar. Sou, apenas, alguém que luta por direitos sociais para minha classe. Direito à cidadania, à educação… mas também ao trabalho, trabalho digno e seguro. Eu sei o que você talvez esteja pensando, leitor; em seu íntimo, decerto está lembrando de um cego, ou surdo, ou cadeirante de suas relações, que trabalha em igualdade de condições com os demais. Sim, esses casos existem; mas podemos afirmar seguramente que são uma pequeníssima minoria. No Brasil e no mundo, infelizmente, ainda somos desprezados dentro das empresas, jogados para lá e para cá sem rumo nem esperança.

Lutamos por respeito, por dignidade, por trabalho, por tudo. Nossos esforços, todavia, de pouco adiantam. Temos a LBI, ferramenta extremamente importante criada no governo Dilma para nos fornecer amplo amparo legal em nosso cotidiano, nas tantas vezes em que temos de brigar para garantir qualquer direito básico. Mas será suficiente? Garanto-vos que há muito o que melhorar, muito o que fazer até que possamos dizer que o Brasil é um país onde a inclusão é plenamente feita na prática. E a coisa não para por aí. Eu seria muito egoísta se, no dia de hoje, me limitasse a escrever apenas acerca das dificuldades dos deficientes na nefasta sociedade de mercado na qual vivemos. É preciso mencionar os demais excluídos, os demais marginalizados do sistema, os tantos e tantos componentes do lumpesinato hodierno.

“Lumpesinato? Mas que diabo é isso?” Quando ouvi tal expressão pela primeira vez, senti certa estranheza: “teria ouvido direito? Que negócio era aquele?”.

Estava na primeira semana de aulas, no primeiro semestre de ciências sociais. O professor, um senhor simpático, bonachão e de inconfundível sotaque carioca, falava sobre as relações de trabalho ao longo do tempo. De repente, diz: “Porque o lumpesinato bla, bla, bla…”. Não pude prestar atenção no restante da sentença. Rapidamente, sim, no mesmo momento, pesquisei na internet sobre aquilo; seria difícil continuar à acompanhar a aula sem entender aquele conceito. E a definição é muito simples! Em verdade, “lumpesinato” é apenas um nome pomposo para algo que está presente desde o início da sociedade. A grande camada social pobre, sem recursos, trabalho formal ou consciência política é, segundo teorias da sociologia, chamada “lumpesinato”. E como está tal classe no Brasil? Infelizmente, tem aumentado muito nos últimos anos.

Em Curitiba (considerada por alguns como capital modelo e chamada até mesmo de “cidade europeia dentro do Brasil” por aqueles que não conhecem-na em plenitude), podemos notar sem grande esforço um número cada vez maior de pessoas recorrendo ao trabalho informal a fim de garantir a mínima subsistência para si e para os seus. São vendedores de doces, salgados, canetas, acessórios, chaveiros, água… viajando em nosso transporte público, dia a dia tentando ganhar algum dinheiro. Estão também nos semáforos, esquinas, praças, sobrevivendo numa cidade que, tantas vezes, não os acolhe como cidadãos.

A realidade atual é triste; pessoas com deficiência, imigrantes, indígenas e tantos outros grupos vivem, em sua maioria, a margem do mercado. Não conseguem um trabalho digno, tampouco uma oportunidade de emprego onde possam se desenvolver como sujeitos de sua própria história. Há alguma solução possível?
Creio firmemente que, enquanto não houver plena consciência social por parte das empresas e da sociedade como um todo, quaisquer que sejam as soluções apresentadas, hão de esbarrar na má vontade e no desconhecimento e desinteresse de alguns gestores públicos e privados.

Fonte: http://lucasantoniocwb.blogspot.com/

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